Salve, Queridagem!
Esses dias eu conversei com uma turma que tá começando mais uma associação canábica que vem se formando aqui em Pernambuco. Faz poucos anos que nasceu a primeira e depois dela algumas outras vêm surgindo pelo Brasil inteiro. Esses grupos, via de regra, reúnem pessoas que desejam lutar pelo acesso a medicamentos à base de maconha para suas famílias. Algumas reivindicam a pauta antiproibicionista de forma mais geral, outras menos. De toda forma é inegável que as descobertas envolvendo efeitos medicinais na cannabis vêm cada vez mais rompendo preconceitos e fazendo com que mais pessoas percebam que a legalização é um caminho sem volta.
Quando eu comecei a participar da Marcha da Maconha, há mais de dez anos, a gente quase não falava do uso medicinal. Trazíamos o debate sobre a violência que a proibição traz pra perto dessa planta e no tanto de vidas que estávamos perdendo – não para uma droga, mas para ‘guerra’ que só mata gente. Numa sociedade marcada pelo individualismo e pelos privilégios de uma classe que se entende acima da própria lei e que controla os meios de comunicação, não é fácil chamar a atenção para vidas negras, jovens e pobres.
Assim, o fortalecimento das organizações e do debate sobre as já muitas e comprovadas propriedades medicinais dessa planta fez com que houvesse uma pequena flexibilização da lei de drogas e tem gerado jurisprudência. Cada vez mais, mais famílias conseguem autorizações para plantar o próprio remédio no quintal de casa, libertando-se de receitas médicas que chegam a custar milhares de reais por mês. Mas nem os relatos dessas famílias têm sido suficientes para que houvesse avanços substantivos nas políticas sobre drogas do nosso país, nem ações concretas em estados e municípios. Faço aqui um parêntese para aplaudir o Ambulatório Canábico do Serviço Integrado de Saúde (SIS), um equipamento gerido em parceria pela UFPE e pela Prefeitura do Recife. A iniciativa atendeu dezenas de famílias nos últimos dois anos, mas hoje está parada. Muito mais é preciso e muito mais é possível. E a hora é agora.
Estamos vivendo a pior crise sanitária da história contemporânea. Com ela, acentua-se uma crise econômica que já tem quase uma década. Um período de desemprego galopante, desaceleração da economia, perda de direitos historicamente conquistados, precarização de relações trabalhistas... Poucas pessoas lembrariam de um tempo tão difícil para que nossas famílias, em especial as mais pobres, conseguissem se manter com o mínimo de dignidade.
Se, pelo fim do proibicionismo, já havia o argumento da prevenção à violência contra a juventude negra e pobre e da saúde de quem precisa desses remédios, cada vez mais ganham corpo motivações econômicas para que estados e municípios também entendam que têm mais tarefas sobre as políticas de drogas além de educar a sociedade, reprimir o tráfico ilegal e cuidar de quem faz uso problemático de alguma substância.
Naturalmente, é preciso que se mantenha e que se aumente a mobilização para que a legalização (que certamente virá) não sirva de motivação para a concentração da produção nas mãos do grande capital. É preciso que se discuta nova política que garanta o cultivo individual e em associações, que compreenda o direito de quem precisa de medicamentos e a necessária reparação para pessoas (em sua maioria, mais uma vez, negras e pobres) que hoje estão privadas de liberdade por envolvimento com o mercado (ainda) ilegal de drogas.
Mas Pernambuco não precisa esperar tanto pra dar início a um novo olhar sobre a planta.
Com as leis vigentes, laboratórios nacionais já podem produzir medicamentos à base de maconha. Isso me diz que, com vontade política e coragem, o Governo de Pernambuco poderia não apenas produzir esses remédios no Lafepe, laboratório público que muito orgulha nosso Estado, mas também sair na frente no plantio de maconha para esta finalidade. Não é de hoje que a gente ouve falar das qualidades do nosso clima, especialmente no Sertão do São Francisco, tão apropriado para esta cultura. Mesmo optando pelo cultivo em estufas, que permite um maior controle da produção, por exemplo, poderíamos contar com a expertise da academia e realizar parcerias que se provarão importantes para o futuro das discussões sobre esta planta no mundo inteiro.
Imagine plantações experimentais gerando insumos para a produção de medicamentos que podem estar disponíveis pelo Sistema Único de Saúde, além de abastecer o mercado internacional gerando divisas localmente. Imagine centenas de profissionais de saúde com formação pra poder receitar – ou desencorajar – o uso desses medicamentos pra quem acredita que precisa, por todo o Estado. Imagine associações e famílias atuando em parceria e garantindo medicamentos pra quem precisa. Imagine as sobras dessas plantações transformadas em fibras têxteis que podem dar origem a roupas e outros produtos aqui mesmo no Polo de Confecções do Agreste. Imagine a produção de cosméticos ganhando as prateleiras de farmácias e supermercados por tudo o que é lugar.
Imagine, mais na frente, o potencial turístico que nossas plantações poderão ter, as descobertas científicas que irão proporcionar, o tanto de renda que vão gerar para o Estado e para pessoas que terão a oportunidade de se envolver legalmente numa cadeia produtiva que na próxima década irá se desenvolver de forma retumbante no mundo inteiro.
Por quase cem anos, de forma equivocada e pautada pelo preconceito, nos acostumamos a uma narrativa que coloca a maconha como inimiga da sociedade. Agora passou da hora de se recuperar o tempo perdido.
Mais que isso. A conjuntura pede, exclama, reclama, exige. Tem crise sanitária, desemprego, sobrecarga do sistema penitenciário, urgência por novas saídas econômicas. Isso tudo apressa um debate que já poderíamos ter realizado e que ainda está em tempo. Deixar de levar tudo isso em conta é ignorar que a urgência dessa discussão não apenas evita mortes, mas garante qualidade de vida para muita gente.
Pra começar a conversa, é preciso reunir ativistas, cientistas, associações, comunidade médica e acadêmica, juristas, economistas. Juntar todo mundo que tem o que dizer e o que propor. É urgente a formatação de um Programa Estadual da Maconha em Pernambuco. E o prazo é ontem.
Ivan Moraes, vereador do Recife pelo PSOL