Cartas à Queridagem
Recife, 26 de agosto de 2021.
Salve, queridagem,
Faz tempo que eu não sento pra escrever cartinha pra vocês. Passei por recesso legislativo, atropelos de agenda e uma chicungunha que não desejo pra ninguém. Mas também tomei minha segunda dose da astra no braço e tou feliz da vida por ter completado o ciclo de imunização. Sigo de máscara, com cuidado, mas um pouco mais tranquilo. Toda vez que encontro alguém já pergunto logo se vacinou. No Recife, a picada tá disponível já pra todo mundo maior de 16 anos e não tem porque ninguém adiar mais essa parada. Se você não tiver internet, vá no postinho que a turma marca pra você. Lá mesmo você também pode conseguir um comprovante de residência, se já não tiver. Se faltar transporte pra chegar no ponto de vacinação, existem convênios com 99Taxi e com a Uber que te levam lá de graça. Mas hoje não vou falar de pandemia. Quero dividir aqui o fuxico sobre o encontro que tive, junto com a turma do PSOL em Pernambuco, com o ex-presidente Lula.
Adianto que ele estava de calças compridas e eu não percebi o tamanho da coxa. Também não foi a primeira vez que estivemos no mesmo lugar ou que eu o ouvi falar ‘ao vivo’, como se diz. Eu estava em Brasília, na plenária da I Conferência Nacional de Comunicação, em 2009, quando tínhamos a esperança de um novo marco regulatório para a mídia que garantisse a liberdade de expressão pra todo mundo. Antes disso, protestava sobre a possibilidade de se democratizar a radiodifusão a partir da transição digital, enquanto o então presidente inaugurava o residencial do Cordeiro, no Recife. Também aqui, estava no ‘gargarejo’ quando o Festival Lula Livre marcou a primeira presença pública do ex-presidente quando foi solto depois de 580 dias de uma prisão mais que injusta.
Dessa vez foi diferente. Além de ouvir, eu também iria falar. Conquista da decisão de disputar espaços institucionais, eu estaria frente a frente com o melhor presidente da história do Brasil. Que, em seu governo, fez com que milhões de pessoas saíssem da linha da pobreza. Que multiplicou o acesso à universidade e à atenção básica na saúde. Que empreendeu políticas culturais inéditas e, diga-se, criou a Empresa Brasil de Comunicação. Mas que, ao meu ver, perdeu oportunidades incríveis de, com sua liderança e popularidade, realizar reformas estruturais: agrária, da mídia, política, tributária. O resultado é que, desde o Golpe de 2016, vitórias conquistadas com muita luta têm sofrido revezes incríveis. Nos últimos cinco anos, o acúmulo de derrotas tem feito com que direitos sejam retirados numa velocidade assustadora.
Eu pensava nessas coisas todas quando cheguei, com a codeputada Carol Vergolino, no saguão do hotel onde o encontro estava marcado. Foi difícil manter o distanciamento de tanta gente, de tantas correntes, partidos e coletivos de esquerda que estavam por lá. Pouco a pouco, os grupos iam subindo, conversavam com o barbudinho, desciam sorrindo e iam embora. Havia todo um procedimento que nos foi enviado antes. A que horas cada grupo seria recebido, quando e quanto cada pessoa podia falar. O tempo todo eu pensava na importância desse encontro com a maior liderança do campo popular da história do Brasil. Com um homem que tinha feito tanto, que sofreu tanta injustiça, que aos mais de 70 anos segue pensando o futuro. Um cabra que marcou o início da minha militância política, na sociedade civil, em que meu papel sempre foi “levantar o sarrafo” e demandar mais políticas públicas e mais democracia.
Quando chegou nossa hora, nos colocaram numa sala grande, numa mesona daquela retangular, em que todo mundo se vê. Fiquei perto da cabeceira, ao lado da codeputada Jô Cavalcanti. Em alguns minutos entra Lula, dando risada, fazendo piada e já perguntando como funcionava a mandata coletiva das Juntas. “Eu gosto de aprender as coisas”, disse. Nosso grupo era composto de parlamentares e lideranças partidárias e cada pessoa teve a oportunidade de falar um pouquinho. Entre palavras de solidariedade e registros sobre a importância de se derrubar bolsonaro, lembranças de um tempo em que nossa luta era pra que os avanços fossem maiores e mais velozes do que vinham sendo.
A cada fala, meu juízo fervilhava. Precisava encontrar o ponto certo do que dizer, do como dizer. Afinal, eu estava diante de um cabra que escreveu seu nome na história desse país, uma figura que desperta paixões arrebatadoras, sobre quem a indiferença nunca foi opção. Um sujeito sobre quem minha cabeça e meu coração jamais deixarão de debater. Além do mais, o Ivan que estava ali não era mais o militante independente ou mesmo o comunicador indignado. Estava como integrante do partido mais à esquerda do Congresso Nacional, representando milhares de pessoas filiadas no nosso Estado. Em diálogo com o líder do maior partido de massas do país, que quer ser candidato a presidente novamente e que pra isso não nega conversa com ninguém.
Finalmente o microfone, devidamente higienizado com álcool chegou na minha mão. Olhei com carinho pros olhos dele e de Gleisi Hoffman, presidenta do PT, também presente. “É uma honra conversar com vocês, que já me deram tanta alegria e me fizeram tanta raiva”, comecei brincando sério. Fiz questão de colocar minha militância partidária como fruto do processo do golpe. Fraternalmente citei avanços e decepções dos governos petistas. Registrei, pra que ficasse dito, que a militância psolista não estaria de forma alguma num palanque estadual liderado pelo PSB. Usando as palavras de Lula, defendi o diálogo permanente entre forças da esquerda até que o tempo nos diga o melhor momento de definirmos a tática eleitoral. E não perdi a chance de dizer que pautas como a do direito à comunicação e a da legalização das drogas devem ser tratadas com a centralidade que têm de fato na vida das pessoas. De alguma forma eu tenho me feito acreditar que as lições do golpe ainda estão zunindo nos ouvidos da companheirada.
Na hora de ele falar, pouca surpresa. Brincalhão, com uma humildade bem dosada para não parecer arrogante diante de uma vida tão cheia de experiências e aprendizados. Fala mansa, fala fácil. Tem uma técnica de olhar por alguns segundos para os olhos de todo mundo, valorizando cada interlocutor ou interlocutora. Era o velho Lula de sempre, com a disposição de sempre, com o pragmatismo de sempre, conversando e pensando costuras que considera importantes para a superação desses tempos de trevas. Hétero e branco, diz que tem lido cada vez mais sobre a escravidão no Brasil e defende os direitos da população LGBTQIA+ com um debate econômico (“Mas não pagam impostos igual a todo mundo?”).
Aos 75 anos, é um homem do seu tempo, consciente de seu papel no mundo e que não perde o interesse pela dimensão do sonho. Tem vontade de voltar ao Planalto e consciência de que, ganhando, precisa acertar onde errou.
Fim de papo, ganhou presentes, livros, tirou fotos, sorriu pra todo mundo. Já eram quase 20h e eu não vou negar que toparia demais ficar escutando conversa dele e perguntando coisa que não se pergunta numa sala tão grande. Faria uma caipirinha pra o barbudo e tentaria tirar dele segredos que ele provavelmente não contaria. Mas não dava tempo. O presidente ainda iria receber um par de grupos antes de ir jantar com a turma do PSB, partido de centro que governa Pernambuco há 15 anos. Sim, é o Lula que conhecemos, que se articula amplamente e que conhece como poucos os labirintos do poder: um lugar onde a inocência não entra e que estômago forte é preciso para se seguir em frente.
Hoje, nosso partido está em período de congresso e ainda não há definições sobre como nos comportaremos em 2022. Muita água ainda vai rolar antes de definirmos nosso caminho, mas duas coisas eu já posso adiantar. A primeira, que nosso esforço será para que o governo pós bolsonaro seja o mais à esquerda possível. A segunda, que nossa luta não se encerrará no próximo processo eleitoral.
Ivan Moraes, vereador do Recife pelo PSOL.