Recife, 14 de maio de 2020,
Cartas à Queridagem,
Tudo em cima, Queridagem?
Ontem foi aquele dia do ano em que algumas escolas celebram a assinatura da “Lei Áurea”. É uma data polêmica, até porque os movimentos negros compreendem que esse papo de chamar a princesa de heroína não tá com nada. Não sai da minha cabeça a turma do Afoxé Oyá Alaxé dizendo que “13 de maio não é dia de negro” e eu não tenho absolutamente nenhuma autoridade pra dizer que é.
Dizer que ‘todo mundo é um pouco negro’ ou que ‘aqui todo mundo é misturado’ porque muitos têm, como eu tenho, cabelos crespos e lábios grossos, é a forma mais fácil de fechar os olhos para o racismo que é estrutural na nossa sociedade.
E quando a gente diz ‘estrutural’, a gente quer dizer que a forma com que as coisas são, e como as pessoas são tratadas mesmo hoje dia, são fruto de uma construção histórica que nunca deixou de lado a cor da pele ou a origem das pessoas.
Se para as pessoas negras é fundamental que se reconheçam negras e lutem por seus direitos, para nós, pessoas brancas brasileiras, também é urgente reconhecermos nossa branquitude e o que ela significa em termos de privilégios e vantagens que (infelizmente) sempre tivemos diante de pessoas que têm a pele mais escura.
Foi viajando que aprendi que, assim como quase tudo nessa vida, as coisas são relativas. Nos Estados Unidos e na Europa, diante daquela galeguice toda, eu não tinha nada de caucasiano. Na África eu era transparente de tão mulungo, que é como a gente de pele mais clara é chamada em alguns idiomas bantu. Mas não foi simples para mim compreender-me branco justamente no país em que nasci. Já preenchi muito “outros’ no quadradinho da raça/etnia e até já convenci o cabra que fazia o censo do IBGE a assinalar na pranchetinha que eu era preto (isso depois de dar um textão no companheiro, que por sinal era negro, para convencê-lo de que não existe gente ‘parda’).
Cá pra nós. Quanto mais a gente se aprofunda no conhecimento sobre o racismo, mais difícil é admitir-se branco. Dá uma vergonhinha, sabe? Olhar para seu rosto no espelho e compreender que, no lugar onde a gente vive, esse tipo de corpo está associado à figura do opressor não é brincadeira. Mas uma hora o sujeito tem que aprender. E, pra mim, esse aprendizado não para de chegar. A cada ida a um restaurante. A cada debate que participo numa universidade. A cada festa, a cada formação de equipe que acompanho, não consigo mais parar de contar a quantidade de negros e negras que vejo. Via de regra, é pouca gente. Via de regra, me constranjo. E me obrigo a transformar, de alguma forma, essa angústia em ação. Porque conversa a gente já tem demais.
Branquitude tem a ver com a cor da pele, com formato do rosto, com o jeito de ser do cabelo?
Sim, naturalmente.
Mas também tem a ver com origem, classe social e com mais um bocado de coisa que só a vivência nos ensina. Como é que uma pessoa feito eu, que sempre teve oportunidades, que no seu país nunca perdeu nenhuma chance na vida por conta da cor da pele, poderia negar sua condição de privilégio? Melhor do que dizer que ‘não é comigo’ é botar esse privilégio ‘na roda’. Questioná-lo e usar toda esta condição para abrir portas para mais pessoas.
É na vivência dos espaços de poder que me vejo cada vez mais branco. E que percebo a necessidade de haver cada vez mais pessoas negras. Na Câmara do Recife, conto nos dedos os mandatos que são coordenados por pessoas que se identificam como pretas. Que assumem sua negritude e reivindicam a pauta racial, nenhuma. No primeiro escalão da gestão pública municipal, que governa uma população em que mais da metade é preta, talvez haja um par de secretários negros .
“E faz diferença, Ivan? O que interessa não é a competência de quem trabalha pelo povo?”
Faz diferença. Faz muita diferença.
Na gestão pública, capacidade técnica e comprometimento com a função são qualidades imprescindíveis. Mas também é vital que as pessoas nos espaços de poder se identifiquem com o restante da população em toda a sua diversidade. Cada decisão de ordem política expressa a experiência, o conhecimento e a vivência de quem tem a responsabilidade de afetar a vida de outras pessoas. E não tem como ser diferente. Às vezes, a própria presença física, mesmo silenciosa, de corpos diferentes nos espaços de poder já muda a forma com que as coisas são ditas e feitas.
Trago o exemplo do nosso mandato e do tanto que nós avançamos quando, por iniciativa das pessoas negras que o compõem, foi criado o Coletivo de Negritude, que logo assumiu as rédeas de todos os debates sobre a questão racial. Por mais que eu me achasse sensível, vivido, experiente, solidário. Por mais que eu julgasse compreender a necessidade das ações afirmativas, de se combater o racismo nas políticas públicas, eu jamais teria condições de representar o conjunto de pessoas que lutam pelos direitos das pessoas negras com minha cara de colonizador. Não é por falta de vontade. É porque simplesmente não dá.
Foi muito pela luta dessa turma que hoje ocupa quase a metade das vagas do nosso gabinete e de tantas pessoas e organizações parceiras que me ensinaram tanto ao longo dos últimos vinte anos que conseguimos avançar na pauta do enfrentamento ao racismo. Realizamos atividades antirracistas na Câmara, aprovamos emendas ao orçamento público, lançamos publicações que sensibilizam e elucidam questões importantes sobre a história de luta do povo negro e sobre os desafios para conquista de direitos por esta população.
Agora, mais uma vez, fez todo o sentido do mundo estar ladeado por essa galera. Em meio à pandemia do Covid19, nossa turma percebeu desde cedo que, infelizmente, as questões de raça/etnia também são determinantes para a prevenção ao vírus compreendendo as especificidades de cada comunidade, por exemplo. Há indícios para crer que, no nosso país, além de idade e comorbidade, cor da pele e classe social (dois componentes indissociáveis) também são determinantes para saber quem vive e quem morre. Por conta disso, aprovamos requerimentos e protocolamos um projeto de lei para garantir que na nossa cidade os dados oficiais nos digam direitinho o percentual de pessoas negras que perderam a vida ou foram contaminadas pelo corona.
Todos esses são passos importantes, que estamos dando para ampliar a incidência política de tanta gente que, há tanto tempo, luta pela igualdade racial na nossa cidade.
Mas permanece o desafio de fazer com que cada vez mais haja pessoas negras ocupando pessoalmente as cadeiras do poder.
Estando sempre à disposição de quem constrói os movimentos e não perdendo nunca de vista que o protagonismo dessa luta jamais será meu.