Recife, 7 de maio de 2020
Queridagem querida,
Hoje escrevo com saudade e tenho dificuldades de começar. Nesses quase dois meses de isolamento social, é verdade que a vontade de ver gente é um negócio grave. Encontrar as amizades, abraçar, beijar, essas coisas todas. Mas essa semana tem uma saudade especial. Domingo é Dia das Mães, e é a primeira vez que iremos passar sem a minha.
“Mas Ivan, essa data é comercial!”. Verdade. O capitalismo a gente conhece bem: se apropria de tudo o que vê. Em volume de compras, o dia dedicado a essas mulheres só perde para o Natal. Lógico que não foi isso que Anna Jarvis tinha em mente quando propôs a celebração laaaaaaaaaaá em 1907 e não é isso que me vem à cabeça quando penso no segundo domingo de maio.
O que penso é nela. Dona Sineide. Uma mulher que não parava quieta, que não descansava. Quando botava uma coisa na cabeça, se multiplicava em braços, pernas e verbo para que seu desejo se tornasse realidade. Esperançosa, aos sessenta e tantos anos, emitiu um passaporte sem a menor perspectiva de viajar ao exterior. “E se surgir uma oportunidade? Já quero estar preparada”. Esse era o tipo de gente que mamãe era.
“Mas Ivan, essas cartas não são sobre política?”
São sim. São sobre política, sobre o que eu tenho aprendido no exercício do mandato. E são sobre a política que a gente vive no nosso dia a dia. Então vocês me desculpem, mas hoje é sobre mainha mesmo. Sobre o amor que ela vivia com ações a todo o momento e sobre o tanto que me ensinou ao longo da vida (e que também aprendeu quando esse filho resolveu botar a cara num santinho e pedir voto pelo meio da rua).
Bom que se diga. Mainha fez o que podia para que eu não entrasse nessa. Assim como fez o que podia para que eu não entrasse na faculdade de jornalismo. Assim como discordou de mim em tantas outras decisões que tomei na minha vida. Mas em todos, repito, em todos os momentos esteve ao meu lado. Durante a campanha eleitoral formou uma dupla dinâmica com meu pai que inspirou o comitê inteiro. Chegou a escrever cartas a mão para entregar, olhando nos olhos, a todas as pessoas que tinham sido nossas vizinhas ao longo da vida. Não faltavam uma panfletagem e era difícil convencê-la de que em alguns lugares era proibido pedir voto.
E não era porque concordávamos politicamente. Minha mãe era como a maioria da nossa população. Achava a política uma coisa ‘dos outros’. Uma carreira feita pra quem não presta e que o melhor que uma pessoa ‘de bem’ podia fazer era se afastar dessa sujeira. Dizia que não votava em partidos, mas em pessoas (por mais que eu tentasse explicar que, de um jeito ou de outro, o voto iria pro partido). Chefe de família, profissional dedicada, protagonista em tudo que realizou, nunca se aceitou feminista.
Mamãe achava os protestos dos movimentos sociais muito ‘barulhentos’ e puxava minha orelha quando eu fazia alguma fala que ela considerava agressiva. “Não dá pra pedir isso com mais educação?”. Mainha não queria mesmo mudar o mundo. Mas amava o filho rebelde com sonhos grandes. E pra ela, aquele amor era capaz de explicar absolutamente tudo.
E como não? Imagina esse amor multiplicado pela humanidade? Um amor que serve, que ajuda, que arregaça as mangas, que colabora, que faz tarefa? Um amor que pode até discordar, que briga, que incentiva, que questiona o tempo inteiro.
Um amor que dá carinho e dá textão com o mesmo afeto é coisa potente demais.
Conquistado o mandato, mamãe aprendeu o que era nepotismo quando eu neguei seu pedido de contratar parentes para o gabinete. “Mas nem pra trabalhar, Ivanzinho?”. Nem pra trabalhar, mainha, não pode. “Então a pior coisa do mundo é ser parente de político sério”. Esta frase ela começou a dizer em todo canto, a cada ‘não’ que recebia. Repetia e repetia chateada e orgulhosa ao mesmo tempo. Sim, isso é possível.
Comigo, sofreu ao conhecer todas as limitações legais que um mandato legislativo tem.
Poucos dias antes de morrer, me chamou para sugerir a criação de cooperativas de lavadeiras e costureiras. Seria uma forma de garantir renda para mulheres em situação de vulnerabilidade. Jurava que havia demanda pra estes serviços e que essas trabalhadoras, organizadas, conquistariam sua independência e fariam a diferença em suas comunidades.
Ela tinha tudo desenhado na cabeça.
Só faltava a grana para comprar os equipamentos. “Mas não tem político que monta creche, tem ambulância, distribui dinheiro?”.
Com recursos de um mandato legislativo, legalmente, infelizmente, não.
De tanto participar e sugerir e olhar para a cidade e se indignar mamãe emplacou uma proposta no mandato. Ela se arretava muito com o tanto de placa de obra na cidade do Recife que não tem o prazo previsto para a entrega. Pode reparar. Nas intervenções urbanas da Prefeitura, é raríssimo que a informação esteja completa. O que a gente mais vê são placas dizendo que a obra será entregue em ‘180 dias’, ‘120 dias’, ‘90 dias’. Mas, sem a data do início explicitada, o que são mesmo ‘180 dias’? ‘120 dias’ a partir de quando?
Assim ela sugeriu um projeto de lei que regulasse essa bagunça.
Que dissesse direitinho que informações as placas deveriam ter. E isso a gente podia fazer!
Tinha tudo a ver com os princípios do mandato, com nossa luta por transparência nos gastos públicos.
Só que o quê? Quando fizemos a pesquisa, vimos que essa lei já existia desde 2003. É a lei 16.853, que diz direitinho tudo que não pode faltar numa placa dessas, inclusive a data de início e de fim.
Nossa iniciativa então se transformou na campanha #BotaDataNaPlaca e já detectou dezenas de irregularidades nessas peças por toda a cidade.
Apesar de alguns reparos, ainda não conseguimos sensibilizar o poder executivo para que cumpra a lei, mas estamos denunciando em tudo o que é canto e ainda tenho esperança de que a gente consiga avançar com essa pauta.
Até porque a teimosia eu acho que herdei de Dona Sineide.
Um beijo grande, mamãe. Um beijo grande, mamães.