Mais cedo desviei de pedestres na ciclofaixa da Agamenon Magalhães, que ocupou a calçada para “garantir a permanência de todas as faixas para carro” - Beto FigueiroaI/van Moraes
Miró disse que janela de ônibus era danado pra botar a gente pra pensar. Nunca vi o poeta da Muribeca pedalando, mas tenho a impressão de que diria o mesmo a partir do selim de uma bike.
Nesses dias, voltando do trabalho pra casa, o juízo começou a ir ainda mais longe que a magrela. Mãos no guidom e olhar atento a todos os movimentos da rua, quem escolhe o transporte ativo em duas rodas se acostuma a conversar consigo mesmo. Diálogo intenso e silente que, no meu caso, tem como trilha sonora Belchior cantando baixinho num fone que se equilibra no ouvido esquerdo enquanto o direito presta atenção em buzina, motor, latido e grito. Escolher bicicleta é exercitar os sentidos.
E nesse dia eu vinha no meu caminho, parte ciclofaixa esburacada, parte asfalto selvagem, parte ciclovia lisinha, parte ciclorrota que se confunde com pista de cooper. O cearense me diz ter medo de avião, mas meu susto só veio com um ônibus fazendo uma curva improvável e avançando pelo espaço exclusivo para bicicletas.
Mais na frente, um carrão bonitão deu-lhe uma esquerda sem olhar e quase meteu o parachoque na minha venta. À quase tragédia cotidiana, respondo com um polegar para cima e uma cara séria. Mentalmente, xingo os piores impropérios. Não dá pra arrumar briga. Um cabra que se transporta dentro de uma arma com uma tonelada é capaz de tudo.
Quando meu pirralha está na cadeirinha o cuidado é redobrado e a conversa gritada. “Tá tudo certo aí atrás?”, repito a cada sinal. Já virou rotina agora ele brigar pra ir sozinho, na própria bicicleta em que já se equilibra sem rodinha. Tarefa de pai é dizer que “não” até que seja seguro. Quando será seguro? Quem dera garantir que esse ano não morremos.
Vez em quando cruza uma pessoa conhecida. Grita meu nome e nem sempre eu consigo saber quem é. Mas levantar o braço com o mesmo polegar pra cima é mais fácil. Dessa vez com sorriso e muitas vezes um grito de “booora!”, que mostra reconhecimento. Eu sou pessoa. É curioso como ciclista gosta de se cumprimentar.
A bicicleta é o transporte do amor, eu penso enquanto Antônio Carlos confessa que mudar as coisas interessa muito mais. Concordo e grito junto com ele enquanto percebo que cheguei na primeira ciclofaixa inaugurada no Recife, no bairro da Torre. O espaço virou pista de caminhada e hoje é proibido para bicicletas. Sigo pertinho dos carros no mesmo lugar em que há poucos dias uma ciclista foi atropelada e acabou morrendo.
Em três semanas, foram nada menos que quatro mortes de pessoas que pedalavam no trânsito do Recife. Três delas em lugares em que o Plano Diretor Cicloviário, que tem mais de 10 anos, previa a construção de rotas cicláveis. Todas elas atropeladas por motoristas profissionais numa conjuntura em que, nos ônibus, motoristas também têm que passar troco. Se a média de ciclistas que vêm a óbito nas nossas violentas ruas é de 22 por ano, mais do que dobrou neste pequeno intervalo.
O aumento de gente de bicicleta sendo atropelada é mais um sintoma de um trânsito cada vez mais assassino. Dados da própria Prefeitura do Recife mostram que o número de sinistros com vítimas mais do que dobrou em dois anos. Não está fácil pra ninguém, eu penso enquanto paro no sinal e vejo um jovem pedindo comida com um cartaz escrito em mau português.
O compositor sobralense fala de galos, noites e quintais. Lembro de uma infância entre o mangue e a bola-de-gude no asfalto da rua em que vovó morava. Não está feliz, mas não está mudo. Eu também canto muito mais enquanto uma lágrima escorre do meu olho. Não é tristeza, não é alegria. Eu choro de música e de esperança.
Mais cedo desviei de pedestres na ciclofaixa da Agamenon Magalhães, que ocupou a calçada para “garantir a permanência de todas as faixas para carro” numa das maiores avenidas da cidade. Fico confuso e sem entender como seguimos na vanguarda do atraso enquanto boa parte do mundo já põe em prática estratégias para reduzir a quantidade de veículos automotores nas suas ruas. Mudança climática, qualidade de vida, mobilidade, saúde, violência no trânsito, tudo a ver com tudo.
A autoridade municipal diz que não é com ela. Que já fez demais colocando um monte de ciclovia pintada em rua pequena pra não atrapalhar os carros. Aos domingos e feriados, cones e servidores terceirizados fazem a frente pra quem quiser dar um rolé em segurança. De segunda a sábado, não. Durante a semana o sinal segue fechado para quem insiste em questionar se ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.
Edição: Vinícius Sobreira /Brasil de Fato Pernambuco