Quarta passada nosso mandato presidiu, na Câmara Municipal do Recife, uma audiência pública sobre o comércio popular na Avenida Conde da Boa Vista. Mais do que reuniões ou debates, audiências públicas são instrumentos de democracia direta. A convite de uma instância de poder, nestes momentos a sociedade pode comparecer para dar sua opinião, sugestão, avaliação ou proposta sobre um tema específico. Seus encaminhamentos são publicados em diário oficial e podem (devem!) ser fiscalizados pelo poder legislativo e, naturalmente, por toda a sociedade. Em pouco mais de dois anos, nosso mandato já realizou mais de vinte desses momentos, que têm sido fundamentais para que possamos guiar nossas ações a partir de demandas objetivas das mais de duas mil pessoas que, nesses momentos, ocuparam a casa José Mariano com seus corpos e vozes.
Audiências não são os únicos instrumentos formais de participação direta que dispomos em nossa engatinhante e constantemente ameaçada democracia. Conferências, por exemplo, costumam ser realizadas em várias etapas (municipais, estaduais, regionais, livres, etc). Em cada uma delas, via de regra, são eleitas pessoas delegadas para, numa culminância nacional, monitorar e deliberar sobre os rumos de políticas específicas. O formato de participação é definido por comissão organizadora específica e normalmente admite a participação de sociedade civil, servidores/as, representantes do Estado e até de grupos empresariais.
A Conferência de Saúde é a que acontece há mais tempo. Desde 1941, a população já foi convocada 16 vezes para definir os rumos da política pública pra esse setor. Foi a partir dela, por exemplo, que foram desenhadas as linhas centrais do Sistema Único de Saúde que, com todos os seus defeitos, é um marco mundial quando universaliza o direito ao atendimento sanitário para todas as pessoas.
Além desses momentos pontuais, há também órgãos que permitem a participação direta da população na fiscalização e controle social (às vezes até deliberação e execução de políticas públicas). São conselhos, comissões e comitê, órgãos costumeiramente compostos por representantes eleitos para mandatos definidos e que têm a prerrogativa de, sistematicamente monitorar ações governamentais, demandar estudos ou mesmo, em alguns casos, definir a utilização de fundos setoriais. Não é pouca coisa.
Ferramentas institucionais de participação são importantes para que a incidência política dos mais variados sujeitos seja exercida de forma transparente, fora das conversas de gabinete e conchavos à pouca luz. Quem quer demandar, demanda de forma pública. Submete suas propostas ao escrutínio de outros participantes, nem sempre parte do mesmo grupo de interesse. São espaços férteis para o debate entre ideias divergentes e da busca pelo consenso.
É bem verdade que, tanto audiências públicas, conselhos e conferências, no nosso país, ainda precisam de mais pluralidade, participação e legitimidade diante das diversas esferas. O objetivo de quem persegue uma democracia plena é fazer com que, cada vez mais, mais pessoas e organizações participem desses espaços e mobilizem-se para que seus encaminhamentos sejam respeitados pelos sujeitos responsáveis por implementá-los.
Mas o “revogaço” anunciado pelo decreto 9759, assinado semana passada pelo atual presidente da República vai na contramão disso tudo. Ao invés de fortalecer as instâncias de participação e controle social, o governo federal pretende acabar com dezenas desses órgãos, em nível federal. Alguns desses colegiados, como por exemplo o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI), o Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp), o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade) e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), têm sido referência na formulação de programas e projetos que contribuíram bastante para a construção de políticas pra cada um desses setores.
O autoritarismo não gosta de divergência, de debate, de disputa democrática em espaços igualitários de poder. Prefere a política do cochicho no ouvido. Do almoço em família. Do telefonema do amigo. Do happy hour no country club. A todas estas formas escusas de debate sobre a coisa pública, o novo governo acrescenta um arremedo de participação enviesada quando, por exemplo, toma decisões (ou, mais frequentemente, volta atrás nelas) a partir de medições em redes sociais. Nessa lógica perversa que exclui boa parte da população, ainda sem acesso à banda larga e muitas vezes analfabeta digitalmente, democracia é o que menos se tem, afinal de contas, a régua do governo mede de forma diferente posicionamento de perfis que aplaudem ou discordam das linhas centrais da atual gestão.
Quando, numa canetada, o presidente anuncia a extinção de órgãos em que praticamente todas as pessoas interessadas (independente de cor partidária ou visão de mundo) têm a prerrogativa de buscar a participação, fecham-se as portas do debate e se enfraquece até o combate à corrupção.
Afinal de contas, quanto menos gente olhando de perto, mais fácil burlar regras e pegar atalhos nem sempre republicanos. Mais uma vez, em nome de um pretenso “combate à ideologia”, a ultradireita que tomou o poder no Brasil empurra a sua própria ideologia goela abaixo de um país cada vez mais perplexos com os rumos que tomou.
No início da semana, meu partido, o PSOL, protocolou ação popular na Justiça Federal pedindo a anulação do decreto que atenta contra a Constituição de 88 e as normas internacionais de direitos humanos. Uma medida, sem dúvida, importante. Mas que não será suficiente para barrar o retrocesso se não contar com o apoio e a mobilização que precisa vir de toda a sociedade. Que não nos calemos para sempre.