Recife, 2 de abril de 2021
Cartas à Queridagem
Salve, Queridagem,
Escrevo pensando na Sexta-feira da Paixão. Dia de o povo cristão fazer jejum, penitência. Pensar no sacrifício de Jesus Cristo, na renovação da vida, nas possibilidades de se começar de novo, de melhorar nossa relação com as outras pessoas. Mesmo antes de o Nazareno chacoalhar com as estruturas do judaísmo, o povo hebreu já celebrava a Páscoa, lembrando a sua libertação do Egito, com os mesmos significados: liberdade, vida nova, comunhão.
Foi justo numa época da páscoa judaica, diz a Bíblia, que Jesus protagonizou um de seus milagres mais bonitos. Tá lá no Evangelho de João que, à beira do mar da Galileia, o Cristo estava diante de uma faminta multidão com cerca de cinco mil pessoas. Alguém lá no meio tinha levado cinco pães de centeio e dois peixes. Após uma bênção, aquele alimento saciou a fome de todo mundo e as sobras ainda encheram doze cestos.
Não é preciso ter fé no transcendental pra se impactar com esta história, que pode ser interpretada de diversas formas. Sobre o que é de fato alimento; sobre resiliência; sobre adaptar-se às suas realidades; sobre dividir o que se tem; sobre esperança em tempos melhores; sobre a importância, por exemplo, de se poder confiar nas suas lideranças.
Este ano a Páscoa chega de um jeito diferente pra todo mundo. Num feriado que, em sua origem, representa o renascimento, está difícil desviar-se dos pensamentos sobre a morte. Mais de 300 mil pessoas mortas no Brasil pela Covid19, nenhuma previsão confiável sobre quando teremos vacinas pra todo mundo. Vivendo em pandemia há mais de um ano, a maior parte da nossa população permanece diante de um dilema perverso. Todo mundo com o mínimo de discernimento já sabe que, até as duas doses da imunização, o jeito é mesmo ficar em casa. Mas pouca gente consegue se isolar de verdade. Às vezes falta comida na mesa, às vezes falta teto, às vezes falta tudo.
Só que, diferente de quando Jesus caminhava no deserto da Galileia, o problema atual não está necessariamente na ausência de itens alimentícios disponíveis para quem tem fome. Afinal de contas, se há uma multidão que acorda todos os dias sem saber se haverá o que colocar na panela, a pontinha da pirâmide social também cresceu. Há, no Brasil, mais de 200 mil pessoas milionárias, 7% a mais do que havia antes da crise sanitária. Também tem mais gente com patrimônio avaliado em mais de R$ 1 bilhão. Com 33 novos membros, o ‘clube do bilhão’ já conta com 238 pessoas no país. São banqueiros, empreiteiros, donos de lojas de departamentos, varejo, supermercados, industriais. Gente que não faz conta pra comprar comida (nem nada) e que precisa, sim, se implicar quando nossas irmãs e irmãos de humanidade estão na pior.
Ano passado saiu uma lista da Forbes que mostra seis pessoas pernambucanas com patrimônio avaliado acima do bilhão. Não preciso dizer (mais vou) que essa galera tem condições de garantir a segurança alimentar de todo mundo no Estado e ainda continuar extremamente rica. Mas vamos descer um pouquinho e ver que tem uma galera que também pode ajudar. Nós, que estamos com cargos no poder público e todo mundo desta minoria sortuda que conseguiu manter seus salários ou renda durante este período de carestia. Gente que pode até estar economizando um trocado sem viajar ou frequentar restaurantes. Que não tá gastando mais com gasolina, cinema, teatro, roupa nova, boate. Gente que tá adoecendo o juízo em busca de alguma alegria nesses períodos tristes. Possibilidades não faltam.
Aliás, esta deveria ser a maior lição da pandemia. Quando a humanidade corre risco, é hora de todo mundo contribuir pra superar isso tudo junto. É preciso, sim, cobrar dos governos que façam a sua tarefa. Que cobrem impostos sobre grandes fortunas, que priorizem políticas de assistência, crédito e renda emergencial. Que garanta condições materiais para as pessoas ficarem em casa; que faça das tripas coração pra fazer chegar as vacinas que permitirão às pessoas, aos poucos, retornarem a alguma normalidade.
Mas também tá na hora da solidariedade. Lembro de ter participado de dezenas de campanhas humanitárias que surgiram logo em março do ano passado. Campanhas organizadas por coletivos, movimentos sociais, igrejas, sindicatos. Por famílias, amizades de trabalho, pela turma da pelada. Todo mundo reconhecia que precisava dar uma mão a quem não poderia, naquele momento, observar a necessária quarentena. A pandemia foi se alongando e rapidinho a gente viu que não seriam apenas três ou quatro meses. Nesse tempo, muitas campanhas foram perdendo a força, foram se dissipando. O auxílio emergencial de 600 reais, luta da esquerda no Congresso, foi implementado e serviu pra dar um respiro a muita gente que hoje em dia já não sabe mais como fazer pra sobreviver sem esse apoio fundamental.
Meu passado de coroinha ficou pra trás, é verdade. Mas os ensinamentos sobre amor e solidariedade seguiram comigo por todos esses anos, se fortalecendo a partir da experiência material de conviver entre as pessoas mais pobres. Com as pessoas mais vulneráveis da nossa sociedade, aprendo diariamente lições de coletividade e generosidade. E é em nome de toda essa turma que eu reforço meu apelo pra a gente, que tem mais um pouquinho, não parar de doar. Não há a menor previsão de quando vamos poder abrir o comércio com segurança. Sem previsão de vacinas, ninguém arrisca dizer quando teremos condições de levar nossas filhas de volta à escola, torcer no estádio, ir com segurança ao culto, aglomerar na noite.
Mas a cada dia em que a gente acorda, podemos organizar ou participar de uma campanha de doação de alimentos, de itens de higiene, de produtos de proteção como máscaras ou álcool em gel. Cada pequeno gesto desses, cada doação dessas poderá significar a vida de uma pessoa, de uma família, de uma comunidade inteira. E isso é muito mais Páscoa do que todos os ovos de chocolate que há no mundo.